21 de dezembro de 2013

Antes de te conhecer

Sensing-Owls


O tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer. Eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar, que eu amava quando imaginava que amava. Era a tua, a tua voz que dizia as palavras da vida. Era o teu rosto. Era a tua pele. Antes de te conhecer, existias nas árvores e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde. Muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

A Criança Em Ruínas



18 de dezembro de 2013

Se

Fendis-zefa-Corbis

Se perguntares
como,
eu ficarei calado
...
Se perguntares
quando,
eu talvez diga

...
Se perguntares
qual,
eu direi
esse a teu lado.


Geir Campos
O Homem Novo



16 de dezembro de 2013

Invento um cais

Olhares (alles)


Eu vou guardar cada lugar teu
ancorado em cada lugar meu
e hoje apenas isso me faz acreditar
que eu vou chegar contigo
onde só chega quem não tem medo de naufragar.

Mafalda Veiga
Cada Lugar Teu


15 de dezembro de 2013

Jardim


Um jardim caipira, o da minha casa,
Estrelas do norte, cravinas, uma flor rosada
Que desabrochava em pencas e até hoje só vi
Nos canteiros dos pobres.
E rosas, rosas, rosas, o modo de minha mãe virar rainha:
'Para mim a rosa é a primeira das flores'.

Adélia Prado
O Ameno Fato Terrível


11 de dezembro de 2013

Ilha

Scotte Eyechart



Deitada és uma ilha.
Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada
eu morro da vida
que me dás todos os dias.


David Mourão-Ferreira 

A Ilha


7 de dezembro de 2013

Eu sei...



Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo. 


António Gedeão
Amostra Grátis


2 de dezembro de 2013

Imaginação

Rozuco


Imagina que deus te fez para mim.
como se a maravilha que vivo fosse só a
consequência da sua vontade.
imagina que tudo será perfeito, mesmo que, tão
precipitadamente, entendamos ter encontrado o que não existe.

Valter Hugo Mãe 

Mensagem ao Dia Feliz
Como se é feliz na felicidade imaginada 
de quando se imagina que se foi.

Para sempre



21 de novembro de 2013

Flor ávida de orvalho

Bunsen Bookworm/Corbis


Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

As Palavras Interditas


6 de novembro de 2013

Talvez

Marília Campos

Talvez
Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio.

Albano Martins

Palinódias, Palimpsestos

Deixai-me limpo
 O ar dos quartos 
E liso
 O branco das paredes
Deixai-me com as coisas 
Fundadas no silêncio.
Instantes


Se o mundo fosse acabar, dançaria contigo

Google




No final da canção, ela se curvou e eu não estava próximo para segurar sua cintura. E caímos com violência no chão. Só deu tempo de deixar meu dorso como travesseiro de sua cabeça.  

Deitados no tapete, gargalhamos da ensurdecedora queda. Porque a queda é também improviso. A queda é onde acontece o melhor abraço. O mais humilde abraço. O mais sincero abraço. 

Naquele momento antes de subir e finalizar a coreografia, lembrei de nossa conversa durante o primeiro beijo.

Eu tinha dito com orgulho "Somos muitos", quando ela me corrigiu "Temos que ser menos, cada vez menos, até sermos um só". 


Fabrício Carpinejar




1 de novembro de 2013

Linguagem



Quem coloca fervor e paixão na linguagem, sempre será uma tarada. 
Minha tara é a linguagem.



7 de outubro de 2013

Promete-me

Koya Takeshita



Promete-me que amanhã virá a lua e que,
na imensidão da noite iluminada,
cantaremos o mar um para o outro.
Promete-me que no fim terei existido.

Um Mover de Mão
Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

As Mãos e os Fruto




26 de setembro de 2013

Hora antiga

Deviantart


Às vezes, de repente, no fundo dos espelhos
havia um brilho que era o brilho
duma hora antiga.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Contos Exemplares, Portugália
Mas horas há que marcam fundo
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo.
Assim a vida nos afeiçoa



2 de setembro de 2013

Imensa

Google





Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar

Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo


Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão





20 de agosto de 2013

A Arte de Perder

Chris Rogers/Corbis


A arte de perder não tem mistério;
Com tantas coisas propensas a serem perdidas,
A perda delas não é nenhum desastre.
...
Comece então a perder mais, e mais depressa;
Lugares, nomes e o destino de sua viagem.
Não é nenhum desastre.
...
Eu perdi duas cidades, muito queridas. E, mais ainda,
Alguns domínios que eu possuía, dois rios e um continente.
Sinto falta deles, mas não foi nenhum desastre.

Perder você inclusive (sua voz gozadora,
um traço que adoro) não me fará mentir. É evidente
Que a arte de perder não tem lá tanto mistério,
Embora pareça (escreva a palavra!) um desastre.


Elizabeth Bishop


6 de agosto de 2013

Ausência

NSMBL



Você prometeu que estaria no outro trapézio quando eu soltasse o meu, não prometeu? Por isso eu balançava de olhos fechados. Sem medo. Por isso eu ficava de cabeça pra baixo nesse pedaço de madeira suspenso por duas cordas. Você garantiu que me seguraria pelos dois punhos e me levaria para o outro lado. Que haveria alguém no fim do meu salto. Você juntou os pés e jurou que não me deixaria cair nesse número sem rede. Com a cara no picadeiro. Foi por acreditar em você que gasto mais uma das minhas vidas. Morro mais uma vez pela sua ausência.
Eduardo Baszczyn
Desamores



23 de julho de 2013

Partida

Google


Cumprias distâncias em mim.
Madrugando não alcançaria.

Venho da tua lonjura, os braços 
eram remos no barco e aço de âncora.
Acostumado à extensão das raízes,
não sobrevivo no vaso dos pés.

Passei a vida aprendendo a respeitar teu espaço.
Como povoá-lo após a tua partida?

Caixa de Sapatos
Só porque a Adri Aleixo pediu.


14 de julho de 2013

Azul



Chis Deeney


Se o azul é um sonho,
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas?

Obra Poética Completa/Tradução de William Agel de Mello

 

1 de julho de 2013

Desígnios

Gettyi Images/Sami Sarkis


Alguém pode me dizer
se estava prevista na palma da minha mão
esta paixão inesperada
se já estava escrita e demarcada
na linha da minha vida
se fazia já parte da estrada
e tinha que ser vivida

ou foi um desgoverno repentino
que surpreendeu os deuses, todos
os que desenham nosso destino
ou foi um desatino, uma loucura
uma imprevisível subversão
que só a partir de agora eu trago marcada
na palma da minha mão.

18 de junho de 2013

A pele é o espelho da memória



Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move. 


Luis Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994

Com o tempo, as mãos, as tuas, 
cairão também no esquecimento.
 E delas restará apenas uma sensação 
de ardor sobre a minha pele.

Lunário



12 de junho de 2013

Eterna companheira

daqui
  
Quando estou sozinho no bar, não deixo
que retirem as cadeiras vazias.
A esperança me faz companhia.






22 de maio de 2013

Cais

Kevin Muggleton/Corbis




Disse-te adeus e morri
E o cais vazio de ti
Aceitou novas marés.
Gritos de búzios perdidos
Roubaram dos meus sentidos
A gaivota que tu és.

Disse-te adeus e morri

De volta ao convés, reabro
o diário de bordo. E o barco continua parado
no oceano sem porto.

Geometria Variável




18 de maio de 2013

Escrevo-me nas palavras

Weheartit



Perguntou-me o que é que eu escrevia nos livros. Respondi-lhe que me escrevia a mim. Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridículas: amor, esperança, estrelas, e nas palavras mais belas: claridade, pureza, céu. Transformo-me todo em palavras.

José Luis Peixoto
Uma Casa na Escuridão




15 de maio de 2013

Paisagem diluída



Foi tão comprido o túnel da noite
e o trem do dia
Entrou com atraso na estação.
Adormeci num banco ao relento
para esperar-te.
Um molho de violetas exaustas
Expirou entre os meus dedos.


Maria de Lourdes Hortas
Paisagem diluída


Nunca houve palavras para gritar a tua ausência.
Apenas o coração pulsando a solidão antes de ti 
quando o teu rosto doía no meu rosto e eu
descobri as minhas mãos sem as tuas.


Joaquim Pessoa
De Onde Chegam Estas Palavras?




29 de abril de 2013

Viagem

Paulo de Sousa


Guardo, na minha pele, esta viagem. 
Para sentir o lento movimento dos dias.

Uma coisa é habitar a pele, 
outra, ter a noite por fragata.

Viagem



22 de abril de 2013

Por ti

Pascal Renaux


Por ti diria tudo ou quase nada
Se não fosse esta fome esta saudade
De ser eterna
Madrugada
Ou ser precária
Eternidade

Por ti
Por ti desço até ao fundo da noite,
desenraízo o tempo, culmino numa estrela,
vivo na imaginação de todas as aves
e acendo o futuro, num gesto antecipado.

Albano Martins
O Futuro em Anos-Luz



17 de abril de 2013

Letras de chuva




















Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Manuel Alegre
Canção Tão Simples




16 de abril de 2013

Espera

Google


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti.
até que todas as coisas sejam mudas.

Eugénio de Andrade
Espera

Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.

Daniel Faria
Explicação das Árvores e de Outros Animais




15 de abril de 2013

Sonhos tresmalhados

Daniel Phill


Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Os Amantes Sem Dinheiro
Para o meu amigo R., que ouve  Eugénio de Andrade enquanto sonha.



14 de abril de 2013

Sem milagres

Katia Chausheva



Não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o leite, a mãe,
o amor, que te procuram.


Herberto Helder
Poesia Toda
Tirem-me deste filme, digam-me como é viver.

A Nova Poesia Portuguesa

11 de abril de 2013

Porta

Weheartit



Abro-me todo: sou porta
que só contigo transpus.


Ruy Belo 

Por do Sol na Boa Nova
morre comigo esta noite
se à minha porta ainda te quedas.

Isabel Coelho
 



10 de abril de 2013

Abismos

A manhe'ser

















E, aquele que não morou nunca em seus próprios abismos
nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas,
não foi marcado. 
Não será exposto às fraquezas,
ao desalento,
ao amor,
ao poema.

O Livro das Ignorãças


9 de abril de 2013

Trapezista

Google



Não o trapezista
mas o circo inteiro
se desequilibrava
Como um rio,
no frio, se arrepia.

Mia Couto 
Bloco Poético de Notas




8 de abril de 2013

Eduardo Galeano

Weheartit



Felicidade


Goolge



Minha avó dizia: para ser feliz, a gente não precisa sair do lugar, a gente tem que ser o lugar. Ela me advertia com seu olhar de madrepérola. Eu não entendia. Ser feliz para mim era sair de casa, depois da cidade, depois do estado e, se possível, do país. Acreditava que quanto mais longe do início mais perto do final. Julgava a independência um modo de fugir. Descobri que estava errado. Quanto mais longe do final mais perto do começo. A felicidade é uma impressão, uma intensidade, que não há como descrever para os amigos.  O que desejamos não se diz, se arde. 

5 de abril de 2013

Solidão


Olhares/António Manuel Pinto da Silva
 

Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim.

Lygia Fagundes Telles
As meninas



4 de abril de 2013

Inverno

Google



Solidão no inverno
O velho aquece as mãos
com as próprias mãos.

Há estações




28 de março de 2013

Colheita

Google

Colho metáforas nos teus olhos
Deixo-as cair no solo
Dos nossos sentimentos
Para que nada se perca
Para que tudo se transforme
Numa interminável colheita.

Inocêncio de Melo Filho
Interminável
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

Uma Voz Na Pedra


22 de março de 2013

Deixa a mão errar

GettyImages




Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.
Deixa a mão errar...







9 de março de 2013

Silvestre e o idioma

Google















Silvestre quer saber
porque razão eu estrago o português
escrevendo palavras que nem há.

Não é a pessoa que escolhe a palavra.
É o inverso.
Isso eu podia ter respondido.

Mas não.
O tudo que disse foi:
é um crime passional, Silvestre.

É que eu amo tanto a Vida
que ela não tem
cabimento em nenhum idioma.

Silvestre sorriu.
Afinal, também ele já cometera
o idêntico crime:
todas as mulheres que amara
ele as rebatizara, vezes sem fim.

Amor se parece com a Vida:
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida.


Idades Cidades Divindades